O
ENCANTAMENTO
Júlio olhou. Ali estava a cena de que muito
ouvira falar e lhe contestava a veracidade. No alto da copa retorcida de uma
goiabeira, estava um bem-te-vi aflito, condenado à morte. Um fio invisível
prendia-o e puxava-o inexoravelmente. Ele piava numa extrema aflição. Sabia que
ia morrer, mas não conseguia libertar-se.
Embaixo, de
cabeça erguida e coleante, estava uma jararaca. Seu olhar fixo prendia o pobre
bem-te-vi, que não conseguia livrar-se daquele encantamento. O réptil forçava o
pássaro a descer. Hipnotizara-o. Mantinha-o preso desde o momento em que a ave,
curiosa, baixara o olhar para verificar a origem do farfalhar, que se levantava
do chão. Os dois olhares cruzaram-se. O réptil prendeu o pássaro. Fulminara-lhe
a vontade. Não podia mais voar. E piando plangentemente pulou para o ramo que
estava logo abaixo do seu pequeno corpo.
Júlio teve
ímpetos de matar a cobra. Mas um desejo cruel de assistir ao desfecho o manteve
imóvel.
O bem-te-vi deu novo pio e novo salto. Não era
mais o seu canto vibrante, agudo, que traspassava a mata. Tinha algo de um
grito plangente, de um apelo de socorro que quebrasse o mortal encantamento. Júlio
teve pena do pássaro. Sabia que bastaria uma pedrada ou apenas um grito pra
libertar o bem-te-vi, pois a serpente procuraria ver de onde partia o perigo.
Também o réptil estava sujeito ao medo. E desde que voltasse a cabeça
interromperia a sujeição hipnótica. A ave poderia fugir. Mas a sua curiosidade
era maior. Queria ver o fim.
E esse não tardou. O bem-te-vi soltou um pio
ainda mais plangente e com as asas abertas pousou no chão.
A jararaca
moveu-se lentamente, num avanço cauteloso. Estava agora a pouco mais de um
metro da ave aterrorizada.
Mentalmente, Júlio
torceu para que o pássaro reagisse e levantasse voo. Supunha, ainda, que a ave
não percebera o réptil, confundido com o chão devido ao desenho da pele e cor
de massapé. Mas não havia possibilidade de engano. A jararaca conseguira
hipnotizar a ave, quando acertara o seu frio olhar, mortal, no olhar do
pássaro, que imprudentemente espiara do alto para verificar o que era aquela
mancha amarela a mover-se. E fora como se uma flecha lhe penetrasse no cérebro,
matando- lhe a vontade. A fome do réptil mantinha-o preso, com firmeza. O
bem-te-vi soltou mais um pio triste. A cobra avançou mais um palmo.
No íntimo de Júlio, travou-se dura batalha
entre a misericórdia e a curiosidade. O coração pulsava-lhe doidamente. Parecia
ouvir-lhe as pancadas como se fosse na pele de um tambor. O pássaro
desengonçado, o bico aberto, as asas distendidas, deu um passo em direção à
jararaca, soltando o pio estrídulo, que traduzia o desespero do condenado à
perda da vida.
Foi então que no
coração de Júlio reboou urna pancada mais forte. Venceu o sentimento de
solidariedade com os mais fracos. Deitou a mão frenética a um galho seco. O
estalido forte do lenho que parte foi acompanhada de um berro! —
Desgraçada!
Ao mesmo tempo, o
galho partido caía pesadamente no tronco da jararaca, que ficou aturdida.
Quebrara-se o encanto malévolo.
O bem-te-vi,
liberto do olhar, que o mantinha cativo, ruflou as asas e disparou num voo
fulminante, como flecha saída do arco. Surpreendida e contundida, a cobra
desfez as suas roscas e coleou com rapidez a refugiar-se em um lugar de capim
alto, onde ficaria mais segura.
Erguendo o olhar
para o céu, onde grossas nuvens eram tangidas pelo vento, Júlio exclamou,
satisfeito consigo mesmo:
— Puxa! Foi mesmo
na horinha!
(Barros Ferreira)
ANALISANDO O TEXTO
1- Quem é a personagem principal da narrativa?
2- Há indicações a respeito do tempo e espaço em que os
fatos acontecem?
3- Qual é o conflito central da narrativa?
4- Em que momento do texto a narrativa atinge seu momento
de tensão máxima? ( clímax).
5- Qual é o desfecho da história?
6- O autor usa vários recursos de coesão para não repetir
uma mesma palavra. Que palavras usa para não repetir a palavra cobra, bem- ti- vi?
7- Em vários momentos o autor faz uso de pronomes. Localize
três momentos em que isso acontece e identifique a palavra a que se refere o pronome.
8- A palavra pena é usada em várias expressões. Explique
o sentido de:
A- Conseguiu terminar o trabalho a duras penas.
B- Vale a pena participar
do novo projeto da escola.
C- Aquele assassino cruel foi condenado à pena capital.
D- Ele está uma verdadeira pena depois da doença.
GABARITO
1- Júlio
2- Tempo indefinido; espaço; em algum lugar repleto de
árvores e de touceiras de capim alto (trecho de uma mata ou pomar abandonado).
3- A dúvida entre misericórdia e a curiosidade.
4- No oitavo parágrafo, quando a cobra fica cada vez mais
próxima do passarinho. Júlio sofre, mas ainda não venceu a batalha entre a
curiosidade e a misericórdia. N o parágrafo seguinte, toma a decisão, e a
história encaminha-se para o desfecho.
5- Desfeito o encanto, o pássaro dispara num voo
fulminante, a cobra refugia-se em uma touceira de capim alto e o garoto
aliviado, satisfeito consigo mesmo.
6- Para se referir a palavra cobra ele usa: o réptil, a
jararaca, a serpente. Para se referir a bem – ti- vi ele usa: o pássaro, a ave.
7- “E fora como se uma flecha lhe penetrasse
no cérebro, matando- lhe a vontade (penetrasse no cérebro do pássaro matando a vontade
do pássaro) “O bem -ti- vi, liberto do olhar, que o mantinha cativo (...)” (= o
bem- ti- vi)
8- a) Com muito esforço
b) Merece o sacrifício ou o trabalho que dá.
c) À morte
d) Muito leve, muito magro.
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